dilúvio
Lá fora o céu desaba, a chuva decide misturar-se com a escuridão avassaladora, típica de uma cidade que se oculta mal os seus ponteiros fazem esquecer as oito e meia da noite. Como sempre acontece quando o clima se enclausura, escolho uma música um pouco mais soturna, que irremediavelmente me envie em direcção ao cosmos, bem por cima dessas nuvens diluvianas. Quando era mais novo, adorava correr durante as tempestades mais bizarras. Fazia questão de despender do guarda-chuva, esse obstáculo entre nós e a pureza da qual os aguaceiros nos cobrem, nunca me importando de quão ensopado poderia ficar. Muitas foram as ocasiões, principalmente durante o secundário, em que passei aulas de química inteiras em frente a um aquecedor, à espera que toda a indumentária deixasse finalmente de gotejar.
Presentemente, não faço nada disso. Ao contemplar o exterior, pela janela, e a ver toda a chuva que cai em catadupa, sem qualquer vontade de cessar, imagino-me a caminhar pela cidade dentro e em escassos instantes estou novamente dentro do meu quarto, bem quente e enxuto. Sempre tive uma predilecção por estar dentro das coisas, de agir, em detrimento de ser um mero espectador. Pois para esta chuva sou agora uma eterna testemunha e não um actor com o qual ela contracena. Será que, aos poucos, me tornarei assim com tudo?
À medida que crescemos parece que nos tornamos mais ausentes em relação à vida, mais cerebrais e menos espontâneos, mais carentes de calor e menos de adrenalina. Prosperamos, é certo, mas será que evoluímos na direcção certa? De todas as vezes em que não arriscamos, em que não nos aventuramos por algo que sempre gostamos de fazer, será que estamos no caminho certo? Nos últimos tempos, coloquei de parte enumeras coisas que sempre me deram um gosto imenso fazer. Fi-lo porque precisei, pois estava carente de uma mudança um pouco radical e se é certo que me tenho sentido bem com isso, também não são poucas as vezes que ponho em causa algumas das minhas decisões.
Hoje estou em casa, com as minhas músicas nostálgicas, o meu escuro inato e um incenso envolvente e precioso, pois preciso deste espaço para mim. Hoje já tive, por mais do que uma vez, saudades de coisas que nunca mais irei ter. Já senti a falta disto, dele, daquilo e de ti. Mas hoje sinto-me também honrado com esta nostalgia, com esta observação estática contrária à minha natureza impulsiva e envolvente.
Esta noite vou ser um mero observador, contemplar o céu que desaba.
Não há comentários
"Mas a operação de escrever implica a de ler como seu correlativo dialético, e estes dois actos conexos precisam de dois agentes distintos. É o esforço conjugado do autor e do leitor que fará surgir o objecto concreto e imaginário que é a obra do espírito."