o dia
Está decidido. Comprei um carro usado, cujo número de anteriores donos deve rondar as duas dezenas, uma tenda de campismo nova onde me espero sentir como se não deixasse o meu quarto e algumas meias – não sei porquê, mas algo me diz que as meias são importantes. Fecho a porta de casa com o intuito de não mais voltar a abri-la, verdade seja dita, nunca gostei desta porta, por isso também não há razões para sentir a sua falta. Acho que tenho tudo. Sim, tenho tudo. E mesmo que não tenha, não importa, pelo menos tenho as meias. Cá fora faz frio, o céu está limpo mas ainda ostenta aquela mistura de azul, amarelo e rosa própria das manhãs que ainda não deixaram as horas passar o suficiente para ver o sol nascer. Todos os carros estão cobertos de geada menos o meu. Não estranho. Entro no carro, pouso as coisas no banco de trás. Porra, faz frio, podia ter escolhido um dia melhor para mudar a minha vida. Deverei deixar tudo isto para amanhã? Afinal de contas tomar uma decisão em cinco minutos, apesar de bastante natural em mim, não é coisa de que me deva orgulhar abertamente. Ponho Sigur Rós no auto-rádio, ligo o carro, aqui vou eu. Poucos são os carros que se cruzam por mim, não que faça qualquer diferença, vou ter bastante tempo para ver passar muitos deles durante os próximos meses. No entanto, é incontestável que me sinto orgulhoso por ser dos poucos condutores na estrada. Afinal, tive a força de vontade suficiente para sair da cama bem cedo e mudar tudo, eles não. Conduzo sem parar, passo por todo o tipo de nuvens e odores, sabe bem esta liberdade. Almoço numa tasca de uma qualquer aldeia no meio do Alentejo. Penso em como têm sorte todas estas pessoas que vivem isoladas de tudo o resto, que partilham apenas com meia dúzia de gente igual a elas este nicho do mundo, onde parece que a vida problemática e fútil das grandes cidades nunca há de chegar. Ao fim da noite estou a chegar ao parque de campismo em Granada. Será ai a partida para a verdadeira aventura, deixar tudo para trás, o que na verdade não é assim tanto, e partir para o mundo. Se ele existe é para que eu o veja, não para que fique à espera de ouvir falar dele. Vou ver, cheirar e tocar cada pedaço deste planeta, e só vou parar quando morrer de cansaço. Ao menos morri a fazer algo que me dava ânimo. Um forte ruído de frequência enervante interrompe toda a linha de pensamentos. Sinto-me confuso, meio inconsciente e com frio, tapo-me. Tapo-me? Mas não estava a conduzir algures na Andaluzia?
Ah.
Não faz mal, o sonho pode esperar.
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"Mas a operação de escrever implica a de ler como seu correlativo dialético, e estes dois actos conexos precisam de dois agentes distintos. É o esforço conjugado do autor e do leitor que fará surgir o objecto concreto e imaginário que é a obra do espírito."