uma de cada vez
Chegou a casa com a roupa ensopada. O dia nasceu soalheiro e, por isso, não lhe ocorreu pegar num dos muitos guarda-chuvas que tinha junto da saída do apartamento. Entre o nascer do dia e a hora a que chega a casa já muito se passou. Dissolvido nas almofadas sob a sua cama, de portátil assente no colo e com as gélidas mãos ocupadas com uma grande caneca de leite com chocolate quente, relega o resto do dia de hoje ao descartável, a todas as tarefas que não peçam mais dele do que uma respiração estável e constante. O dia de hoje, tal como todos os outros, foi longo. Maçador. Por ele os dias seriam mais curtos, gosta de dormir. Gosta de dormir mas sente-se inútil quando passa demasiado tempo na cama o que, a acontecer, regra geral, se traduz numa acesa discussão rematada por uma auto-flagelação irrisória. Nunca resulta, pois volta sempre a dormir de mais no dia seguinte. A fraqueza é um fardo insuportável. De qualquer das maneiras, ter dias longos implica saber ocupa-los bem e essa é mais uma das coisas que ele não sabe fazer. Chegou à conclusão que é no saber ocupar os dias que está o verdadeiro saber de ter uma vida normal. Não quer pensar, equacionar e questionar. Gostava de levar uma vida normal, sem complicações à sua volta.
Não vai conseguir. O mundo é mais duro do que ele, pedindo-lhe mais do que aquilo que ele quer realmente dar. Perdeu a vontade de dar valor às coisas, deixando-as ficar para trás uma de cada vez, não querendo ter mais nada da vida do que a sua própria consciência de que as coisas não deviam ser assim. Chegou a casa ensopado, e assim irá continuar. Não vai conseguir.
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"Mas a operação de escrever implica a de ler como seu correlativo dialético, e estes dois actos conexos precisam de dois agentes distintos. É o esforço conjugado do autor e do leitor que fará surgir o objecto concreto e imaginário que é a obra do espírito."