temores de brincar
Constantemente me recordo do brilho hipnótico daquele televisor antigo, mergulhando a penumbra da pequena sala num inóspito rio de medo enquanto o zunido metálico do aparelho se reflectia pelas divisões vazias da casa onde a minha avó morava. Naquela altura, miúdo concentrado na espantosa magia que a imagem criava e nas histórias sem sentido que elas tinham para me brindar, preenchia as minhas noites de solidão em cima de uma desconfortável e velha poltrona azul, agarrando firmemente os tornozelos, contendo os gritos assombrados de mais uma noite em que eu, medroso, me deixava conquistar pela presença de fantasmas imaginados. Uma casa vazia sempre me fascinou, com os seus cheiros e sons irrequietos todos mesclados numa só crua sensação, desprovida da encharcada e confusa agitação em que o mundo vive fora de cada janela, respirando as histórias que cada parede murmura e sempre esperando que da gaveta com mais pó saia um monstro igualmente poeirento, irrequieto e brincalhão para me contar as horas que o seu dia tem. Naquela altura, as casas vazias eram habitadas por fantasmas faz-de-conta criados por uma infância assustada, sem mais infâncias para partilhar ou redes para amparar quedas desajeitadas. Eram fantasmas que sorriam e inventavam, que me entendiam e tudo partilhavam, quimeras de plasticina em lagos serenos ou espectros de pavor em represa aberta. Sentado naquela sala inundada pelo medo de quem passa a primeira madrugada sozinho, falava com as minhas ilusões na esperança de que elas fossem maiores que o meu corpo, rogando por explicações fáceis sobre o que é feito do certo e do errado, sem gritos intrometidos de uma qualquer cólera extraordinária.
Mas o ontem já lá foi e é neste presente sensabor que interessa atentar. Pois hoje vos digo, irresponsavelmente inquieto mas sem fio de medo a varrer as veias, deambulando perdido pelas sombras indiscretas de uma solidão vagabunda, sou assombrado pelas meigas saudades dos fantasmas da minha infância, essas fáceis metáforas do meu pequenino antigamente.
19:55
tenho tantas saudades do meu pequenino antigamente x')
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